Crítica: M-8: Quando a Morte socorre a Vida


O Brasil é um país segregado racialmente. Isso é um fato, embora muitos tentem negar, fazendo-se de cegos às questões raciais, dizendo “não ver cor” e outros tantos quantos argumentos que não fazem sentido neste tipo de discussão.

Seus problemas não estão só nas ações individuais racistas, mas estruturais em nossa sociedade, que não acabam só com essa mudança de atitude. Um exemplo clássico é comparar quais os grupos raciais prevalentes nas classes sociais, sendo que a maior parte da elite econômica é branca, e vai se invertendo a prevalência conforme descem de classe B à E.

Isso é um problema grave numa sociedade que se diz meritocrática, porém com uma discrepância de acessibilidade a vários elementos considerados públicos. Um exemplo clássico disso é o acesso à educação superior: os mais ricos conseguem facilmente entrar em universidades de elite, tendo acesso econômico maior a professores e suporte para se prepararem para um vestibular – quando não simplesmente “compram” vagas de maneira ilegal – enquanto os mais pobres e desfavorecidos, além de não poderem fazer cursinho pelos preços, ainda têm que trabalhar e estudar.

Esta é a realidade que Jeferson De evoca em seu novo trabalho, “M8 – Quando a Morte socorre a Vida”. A produção, como típica do diretor, confronta e critica muitos pontos graves sobre raça e classe na sociedade, intimamente interligadas no Brasil, abordando a questão da inequidade de acesso ao ensino, a criação de estereótipos e racismo puro e claro. O que não impede que o filme também seja extremamente sensível, abordando o choque de realidade que o protagonista, encarnado por Juan Paiva, passa ao adentrar o ensino superior.

Esse choque de realidades passado por Maurício (Paiva) se dá ao se ver num ambiente completamente desigual, sua faculdade, onde a maior parte dos funcionários como secretárias e faxineiros, além dos corpos a serem dissecados, são pessoas negras, enquanto seus colegas e professores são quase exclusivamente brancos – e de classe alta. Isso é fundamental para a compreensão de uma realidade, que apesar de imerso, ignorava, e o fará lutar para que pelo menos um destes corpos tenha uma dignidade em morte, quando a vida lhe privou.

Além disso, existe também um elemento espiritual muito importante no longa, em particular relacionado às religiões afro: Maurício e sua mãe frequentam um terreiro, onde ele terá contato com a alma do falecido, ainda que podendo ser apenas uma manifestação do peso psicológico do choque sofrido ao se defrontar com sua nova realidade, e assim dando a iniciativa para sua jornada de devolver ao cadáver um pouco de sua dignidade perdida.

Por sua vez, o filme não se atem ao confronto de Maurício com a questão racial, mas também confronta a plateia, e aponta o quanto o racismo é sutil e difícil de superar. No entanto, o resultado não é ofensivo, e ao mesmo tempo que oferece o metafórico “puxão de orelha”, também mostra que não necessariamente é um problema do indivíduo, mas coletivo, proveniente da forma como este foi ensinado, e do ambiente em que viveu.

À parte dos valores sociais da produção, elogios também devem ser feitos às suas opções estéticas, pois consegue alternar entre profundamente intimista, em especial através de planos mais fechados e closes no protagonista, para um olhar coletivo, focando-se no ambiente e com planos abertos. E ainda que isso possa soar algo comum, é na escolha sábia de como utilizar estes que Jeferson De se destaca.

Entre os aspectos técnicos, o que merece uma crítica menos positiva é o ator protagonista: Juan Paiva não é um mau ator, porém sua performance às vezes parece um tanto engessada, particularmente na questão da entonação da voz. Por sua vez, Mariana Nunes (que faz Cida, mãe de Maurício) rouba a cena quando se faz presente na tela, e sua personagem tem uma intensidade impressionante.

“M8 – Quando a Morte socorre a Vida” é um filme intenso e denso, tanto em sua trama quanto nos temas que aborda, porém é bem conduzido e bem dirigido, e para quem gosta de títulos críticos que lhes levam a uma reflexão, é obrigatório assistir.

por Ícaro Marques – especial para CFNotícias

*Filme assistido em Cabine de Imprensa Virtual promovida pela Paris Filmes.