Crítica: “Trama Fantasma”


Trama Fantasma possui um enredo inesperado e é uma grata surpresa. A sua premissa soa como uma história romântica e delicada. No entanto, essa é só a primeira camada. Em uma narrativa seca e direta, Trama Fantasma é uma obra de suspense que permite abrir diversas interpretações sobre o amor e os limites das relações.

Dirigido por Paul Thomas Anderson, o filme tem um corte impecável. De início, o enredo parece uma comum narrativa romântica em meio a roupas elegantes. Temos o último personagem de Daniel Day-Lewis, agora um ator aposentado após ter feito esse filme indicado a seis categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme. O protagonista é Reynolds Woodcock, considerado um dos melhores estilistas em seu meio. Situado nos anos 50, acompanhamos a rotina de criação do artista. Ele trabalha com a irmã Cyril (Lesley Manville), tem as clássicas manias de um gênio incompreendido: aprecia o silêncio no café da manhã, é grosso para obter esse silêncio, dispensa as modelos que desgastaram o seu interesse para encontrar outras musas, e tem ideias brilhantes tornando o tecido em um ser vibrante.

Woodcock tem uma encantadora ingenuidade. Isso é perturbador para um espectador que pretende que Trama Fantasma se enquadre em definições, pois aos poucos notamos que existe nos atos dele uma toxicidade masculina. O nosso primeiro ato é estabelecer como Woodcock usa seu poder de artista para ser abusivo em pequenas situações. E ele o é. Perturba a forma com que Daniel Day-Lewis faz suspirar em poucos minutos, na tela. Aceitamos a excentricidade do personagem diante do esperto sorriso e das expressões milimetricamente calculadas pelo excelente ator.

Quem cede ao encanto, junto com o espectador, é a simples garçonete Alma (Vicky Krieps). Em um inusitado encontro, percebemos que ambos identificam uma costura invisível que os une: a vontade de Alma ser grandiosa, mais do que a vida lhe oferece, e o sonho de Woodcock em encontrar uma verdadeira musa, segundo a sua concepção. Ele diz que há sob o poder de suas mãos definir se Alma tem seios, se não os tem, o contorno de sua cintura, o que mostrar, o que esconder. Essa criação de peças em torno de Alma se revelam um controle do qual a jovem não consegue se desvencilhar por ele estar vestido de promessas.

A frase “eu te amo”, nessa narrativa que, apenas à primeira vista parece um romance convencional, é dita como uma bomba que explode entre os dois. O que é a relação de Woodcock e Alma? Pode ser resumida a essas três palavras? Ao mesmo tempo em que Alma deseja possuir essa vida convencional de trocas amorosas, ela sabe que não pode recebê-lo das mãos de Woodcock. Contudo, mesmo que ele diga que as expectativas sobre ele são criadas pelos outros, e não é algo que ele dá às pessoas, no fim os seus atos com Alma alimentam a ideia de que se trata de uma relação amorosa.

O filme é ainda mais grandioso por subverter esses papéis. Se até certa parte do filme vemos essas trocas de poderes, em que Alma encontra um modo de começar a perseguir certo sonho de costurar enquanto veste as criações de Woodcock, vemos como a sua presença também afeta Woodcock de forma negativa. Ambos são vítimas do toque do outro. E poucos filmes conseguem executar essa ambiguidade com maestria como Trama Fantasma o faz.

Pouco se sabe, na verdade, sobre cada um dos personagens. Eles são apresentados como supostos estereótipos, ao espectador, para aos poucos se revelar aqui e ali um detalhe que não pode passar batido. A relação entre Woodcock e a irmã Cyril é nebulosa, é difícil dizer até mesmo que são irmãos. Alma tem esse nome, o qual nos parece encarnar a ideia de musa. Mas não sabemos nada sobre ela. A jovem é impenetrável. Com muita cautela, o roteiro também revela o que a personagem sente e pensa, mas nunca o seu passado. Ironicamente, com este nome, o filme faz de Alma a personalidade que perseguimos para saber mais, porém a cada passo o mistério é ainda preservado.

O roteiro se assemelha a um grande vestido de inúmeras camadas. Se a premissa parece romântica, como o tecido que é apresentado aos olhos do público, por debaixo dele há estruturas e anáguas e palavras escondidas por entre as costuras. Presenciamos inversões de papel no roteiro sem que sejam inadequadas. Com a desculpa de perseguir o amor, as pessoas podem cometer atos duvidosos.

Diante de tantas narrativas que colocam o amor como um único tipo de história a ser contada, Trama Fantasma ultrapassa limites. Encanta, perturba, causa dores de cabeça, surpresas e desconforto. Tudo isso de forma sutil, por cenas em que a troca entre Daniel Day-Lewis e Vicky Krieps fornece uma energia poderosa de embate.

Aliado a isso, encontra-se a maravilhosa trilha sonora de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. Logo nas primeiras cenas adentramos no ritmo e na beleza do filme graças ao trabalho bem executado da trilha, que parece repetir a fluidez dos cortes de tecidos que esvoaçam no ar ao ser espalhados na mesa, antes de se tornarem vestidos.

Há muito sobre o que falar de Trama Fantasma. Mas falar por completo estragaria a sutileza das entrelinhas que existem nas reviravoltas. O filme desconstrói a ideia de relações tóxicas, mostrando que a questão é ainda mais complexa. O grande mérito de Trama Fantasma é nos colocar no interior de uma relação amorosa, sem que o amor seja evocado por uma definição universal. Aqui se trata de como Woodcock, Alma e muitas pessoas vivenciam as relações, do que prometer o amor puro e sacro. Por fim, Trama Fantasma nos faz ver com mais clareza como o amor é distante das constantes idealizações simplistas cinematográficas ou mesmo da insistência em retratar o erotismo apenas por imagens gráficas.

O título parece dizer que há somente uma trama fantasma nessa obra: as marcas que o estilista deixa por entre o tecido. Palavras, memórias que ele costura para serem lembradas ou deixadas por ele como uma benção. Contudo, o filme com esse título possui várias tramas fantasmas. De relações que guardam segredos. De toques tóxicos que deixam marcas quase imperceptíveis. O mais fascinante é, ao fim, perceber que há várias novas tramas fantasmas para serem descobertas por entre o tecido dessa ficção de Paul Thomas Anderson e como elas ecoam a complexidade que é estar com o outro.

por Marina Franconeti – especial para a CFNotícias