Crítica: Cine Marrocos


Vencedor do Festival Internacional É Tudo Verdade, de 2019, o documentário “Cine Marrocos”, dirigido por Ricardo Calil, apresenta ao público as histórias de sem-teto, imigrantes latino-americanos e refugiados africanos que passaram a viver no famoso e, abandonado,  Cinema Marrocos, e recria, com eles, cenas de filmes clássicos.

Inaugurado em 1951, o Cinema Marrocos, que se encontra no centro da cidade de São Paulo, teve um grande passado. Em 1954, o cinema luxuoso foi escolhido para sediar o primeiro Festival de Cinema do Brasil, com a participação de atores famosos e de grandes figuras do cinema. Com o passar dos anos, no entanto, o proprietário não pagou os impostos devidos à prefeitura e o prédio foi entregue ao poder público.

O não cumprimento de uma suposta reforma, e sem os mínimos cuidados para uma manutenção decente, fez o edifício ficar cada vez mais desgastado. Em 2015, na primeira visitação dos membros da equipe do longa, a realidade do antes festejado estabelecimento, era uma ocupação ilegal de cerca de duas mil pessoas sem condições para ter uma moradia digna.

Com o funcionamento do cinema interrompido há duas décadas, os agora moradores do prédio estavam alocados em um tipo provisório de quartos, buscando encontrar algum tipo de individualidade que lhes fora tirada a partir do momento em que se encontravam naquela situação social e moralmente inaceitável. Mas, o maior problema era o medo constante de perder esse pouco que tinham, já que havia o perigo constante da prefeitura entrar com um pedido legal de reintegração de posse do imóvel.

Da união da equipe do documentário e dos residentes do local, surgiu a inesperada ideia de “reabrir o cinema” e exibir os longas de seu ano de glória, como os clássicos como A Grande Ilusão (1937), de Jean Renoir, Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz, Noites de Circo (1953), de Ingmar Bergman, e Pão, Amor e Fantasia (1953), de Luigi Comencini. Além disso, os ocupantes também foram convidados para uma inédita oficina de teatro, em que poderiam recriar cenas das produções.

Através de uma narrativa metalinguística, acompanhamos as encenações ao mesmo tempo em que descobrimos mais sobre suas vidas e seus passados. O documentário também entrevista Vladimir, líder da ocupação do MSTS, Movimento Social dos Sem Teto, que esteve presente no início das ocupações.

Os trechos reencenados pelos moradores são filmados em preto e branco e remetem ao estilo dos longas de 1954. Nas filmagens, os personagens marginalizados tornam-se protagonistas e mostram um talento que vive escondido na realidade dura da cidade.

O documentário conta com legendas, pois apresenta diversas nacionalidades e tem uma variedade de idiomas, e conta com uma montagem bem construída e uma ótima fotografia, que, além de visualmente interessante, ajuda a construir sua proposta.

“Cine Marrocos” mostra a beleza e esperança que existe na arte e cultura, ao oferecer aos moradores uma chance de se expressarem, mas não apresenta um final feliz, pois ao término das encenações os moradores ainda continuam sob a realidade da ocupação.

A obra possibilita ao espectador uma reflexão sobre a vida daqueles que são empurrados para as margens da sociedade e esquecidos pelo poder público, sem apontar, no entanto, uma realidade melhor.

por Isabella Mendes – especial CFNotícias

*Título assistido via streaming, a convite da Bretz Filmes.