Crítica: Crimes of the Future


Em “Crimes of the Future” (o título não foi traduzido para o português), temos um mundo modificado por diversas mutações que se espalharam na humanidade, mudando radicalmente cultura e economia. Nessa realidade, o casal de protagonistas Saul Tense e Caprice (interpretados por Viggo Mortensen e Léa Seydoux, respectivamente) são artistas que realizam cirurgias em si mesmos com plateias em um grande espetáculo. Tal meio de ganhar a vida vai se cruzar com diferentes grupos secretos que brigam entre si pelo controle dessa linha de shows para seus próprios fins.

O filme pode ser chamado de suspense de ficção científica (o que é bem indicado no título com “Crimes” e “Futuro”) com toques de terror corporal (body horror). Inclusive se encaixa dentro de um subgênero da ficção científica pouco explorado no cinema, mas em ascensão em outras mídias como literatura e games, o biopunk. Aqui, o metal, a conquista espacial e a robótica, tão comuns nas obras de ficção especulativa, são secundários em prol da manipulação orgânica. A fronteira final são os corpos dos seres vivos e suas tecnologias derivadas.

A premissa dessa linha pode causar estranheza, mas metade de nossa tecnologia deriva dos estudos biológicos. A criação do telephone vem da pesquisa do ouvido humano; os sonares inspirados em golfinhos e morcegos; os sistemas de pesquisa de Internet, atualmente inspirados nas rede cerebrais (conhecidas como redes neurais). E o “punk” do biopunk está justamente em contestar até onde as tecnologias que afetam diretamente nosso corpo são usadas para nos controlar e como usá-las para nos libertar das tiranias de grandes corporações, ficando bem claro a atualidade do tema.

O diretor David Cronenberg há décadas trabalha com esse diálogo da modificação corporal proveniente da tecnologia, sendo conhecido como o grande mestre do cinema de Body Horror, mesmo em suas obras mais comerciais como “A Mosca” e “Scanners”.

Em “Crimes of the Future”, ele combina a trilha sonora com um toque eletrônico oitentista, um visual de futuro sujo e cenas chocantes, usando uma tecnologia no limiar entre sintético e orgânico,  refinando ao máximo o processo de geração do clima único de suas obras, se sobressaindo em relação a história por vezes simplista, mas coerente e efetiva como o fio condutor de uma série de reflexões.

Qual é o equilíbrio saudável entre autocontrole e autoaceitação? Como deixamos arte e tecnologia influenciarem os nossos corpos de forma positiva ou negativa? Até onde deixamos que outros tomem o controle, de forma consciente ou não, de nossos próprios corpos? O filme pode ser visto como uma grande digressão sobre o uso do corpo na arte.

Fica a indicação para quem gosta de obras de mistério que dialogam com o grotesco a fim de discutir questões profundas sobre ciência e estética (em seu mais amplo sentido de filosofia da arte).

por Luiz Henrique Fernandez – especial para CFNotícias

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela O2 Play Filmes.