Crítica: Tár


Cultura do Cancelamento: assim é chamada a tendência moderna – alguns diriam até pós-moderna –, particularmente entre os jovens, de boicotar peças artísticas ou de entretenimento de pessoas consideradas culpadas pelo julgamento público em relação a práticas abusivas, comentários considerados homofóbicos, dentre outros, mesmo quando apenas supostos, ou com poucas provas.

O termo vê sua principal circulação entre elementos mais conservadores, como uma forma de deslegitimar tentativas de penalizar, mesmo que minimamente e pouco eficiente, pessoas da indústria cultural que em sua maioria passariam impunes.

É claro que existe um equívoco no uso desta terminologia: a propensão a boicotes, piquetes e outras formas de protesto, contra este tipo de produção predata às redes sociais, Internet, ou até mesmo a televisão, sendo praticada por mães, pais, e outros elementos preocupados que a música, televisão, cinema, jogos, quadrinhos, etc. fossem corromper a “inocência” de seus filhos.

O famoso “Pense nas crianças!”, acusação normalmente vazia de significado, sendo apenas uma rejeição de novas tendências e pensamentos conflitantes com os tradicionais. Ou seja, o termo pode ser utilizado até mesmo contra aqueles que o usam.

O que une essas duas propensões, no entanto é como a indústria cultural é rápida para se adaptar, e lucrar em cima disto: caso a polêmica possa vender – seja lá o que oferte – ainda mais para outros grupos que não são os ofendidos, do que se incluísse estes, então será dobrada a produção, mesmo com o risco de um pequeno boicote – exemplo comum utilizado por bandas polêmicas, como até mesmo os Beatles; caso o elemento polêmico resulte numa mancha muito grande, e assim gere uma queda de lucros, este será demitido, mesmo que apenas com base em suposições ou menos.

“Tár”, do diretor americano Todd Field, tende a ter uma postura conservadora neste ponto. Ocasionalmente, dá uma visão um pouco mais geral e complexa do que os demais que seguem por este caminho: explorando a questão da “Cultura do Cancelamento”, acaba por demonstrar que o problema não se restringe apenas aos jovens que desejam um boicote, mas ainda mais forte são os investidores que se preocupam primariamente com seus lucros, não ligando se as acusações têm alguma sustentação.

Ainda no aspecto polêmico e conservador do filme, também está a reprodução de estereótipos comuns a grupos minoritários: o jovem rebelde negro não-hétero, que não aceita aprender uma música de um compositor europeu branco hétero; a lésbica, que se “masculiniza”, numa posição de poder que tenta seduzir suas aprendizes e protegidas, caso aqui ainda mais grave, dado ser a protagonista; dentre outros. Não que personagens assim não existam na realidade, mas existem nuances consideráveis: em especial no segundo exemplo, é mais comum que homens, em particular héteros, ajam desta forma, ocorrendo vários escândalos na indústria do entretenimento.

Apesar das polêmicas e do confrontamento à “Cultura do Cancelamento”, “Tár” é um estudo da natureza do poder, como ferramenta para mudança e como fonte de corrupção: Lydia Tár (Cate Blanchett) – na trama, a regente das maiores orquestras da atualidade – usa o poder para o progresso, gerando fundações para inserção de maestrinas no meio das grandes orquestras, e para criar interpretações maravilhosas de peças orquestrais.

Mas, ao mesmo tempo usa-o de maneira predatória, como já dito, tentando seduzir as suas protegidas, e quando rejeitada faz tudo em seu alcance para que estas nunca mais tenham uma chance em sua área.

Além disso, o longa dá um destaque especial à decadência psicológica associada à moral: quando uma de suas aprendizes torna-se sua stalker, depois de supostamente ter sido seduzida, Tár tem sua sanidade lentamente erodida, pelo medo da perseguição, e pelos escândalos que começam a brotar por suas atitudes.

Um filme dessas com o escopo de tais temáticas necessita de uma atuação igualmente forte, e neste ponto, Cate Blanchett nos mostra mais uma vez porque é tão premiada: Cada momento da vida da protagonista é atuado com maestria, desde a lucidez à insanidade, com considerável equilíbrio, sem grande exageros que tornariam a atuação menos impactante. Além disso, a atriz também atuou realmente regendo as orquestras durante as cenas, mais uma vez demonstrando sua dedicação.

É claro que em um filme sobre música, a trilha sonora deve ter uma qualidade minimamente magistral. Em primeiro lugar a atuação da Filarmônica de Dresden sob batuta da própria Blanchett faz jus à formação da personagem, e a quinta sinfonia de Mahler está interpretada belamente. A música não-diegética, por sua vez, é uma mistura de peças clássicas famosas escolhidas com grande precisão, bem como composições magistrais de Hildur Guðnadóttir, e funcionam de maneira incrivelmente precisa se misturando às cenas.

Ainda que polêmico, “Tár” é um filme magistral que trata de assuntos complexos e extremamente atuais, e ao mesmo tempo atemporais, desnudando as partes mais intimas e escandalosas, que muitas vezes passam ignoradas, do mundo da música erudita – fato que para quem gosta de filmes profundos, e não apologéticos, não deverá ser um fato alienante.

por Ícaro Marques – especial para CFNotícias

*Título assistido em Cabine de Imprensa promovida pela Universal Pictures.