Crítica: Infiltrado na Klan


Às vezes a vida real pode ser mais estranha que a ficção. Se eu contasse que um policial negro conseguiu se infiltrar no maior grupo suprematista branco norte americano, você acreditaria? Pois essa foi a proeza de Ron Stallworth, um policial negro da cidade de Colorado Springs, que através de ligações telefônicas e um dublê de corpo branco conseguiu fazer uma enorme investigação sobre a Ku Klux Klan na década de 1970.

Para quem não conhece, a Ku Klux Klan foi fundada por soldados sulistas que não gostaram da liberdade que os negros obtiveram após a Guerra Civil Norte-Americana. Esses homens dedicaram-se à tática do terrorismo racial para apavorar os negros a manterem-se servis aos brancos, aproveitando-se da crença de que eles seriam mais supersticiosos, daí o uso de mantos brancos, para que os cavaleiros da Klan parecessem os fantasmas dos soldados mortos da Confederação. Com o tempo seus alvos se expandiram para os judeus – o segundo grupo mais perseguido pela entidade –, e outras etnias, além de religiões e crenças que não o cristianismo protestante, na ideia de manter a América (EUA) branca e protestante, ainda que o principal alvo de seus ataques se mantenham os negros e judeus.

Essa investigação resultou em um livro, “Infiltrado na Klan” (BlacKkKlansman), no qual o detetive Ron Stallworth relata todo o processo e escopo da investigação realizada. E inspirado na obra, chega o filme homônimo, que antes de estrear em 22 de novembro, será exibo na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O longa tem direção de Spike Lee, já conhecido por abordar problemas raciais em vários de seus trabalhos e apresenta os atores John David Washington como Ron Stallworth, e Adam Driver como o dublê de corpo de Stallworth.

“Infiltrado na Klan” tem sua principal qualidade no roteiro: consegue trazer às telas uma operação enorme de inteligência, de maneira que não se torna entediante, nem confuso, pois esse tipo de operação, para leigos pode ser difícil de acompanhar. O humor também se faz presente, dando um tom mais leve a algo extremamente sério e assustador, mas que é tão absurdo, que faz sentido a abordagem cômica, ainda mais quando se pensa que os suprematistas brancos conseguiram cair num truque assim.

As adaptações dramáticas também são muito interessantes, no filme são apresentados dois personagens que na realidade não existiram: o primeiro é Flip Zimmermann, parceiro e dublê de corpo de Ron, um judeu, não muito praticante – na realidade seu dublê, Chuck, era um americano comum; outra novidade é a namorada de Ron, Patrice Dumas (Laura Harrier). Ambos dão um tom crítico importante à produção, que carrega uma carga política pesada: Flip representa a minoria oprimida que aceita seu lugar e não se importa com a opressão; Patrice representa o conflito entre as ideias de Ron, como policial numa instituição marcada pelo racismo, e como negro. Além disso, a parte mais dramática da trama, que não será comentada nesta crítica por motivos de spoiler, é completamente criada para haver um conflito e uma resolução, em um drama que caiba aos cinemas.

É importante falar da pesada crítica política do filme. Além de tratar sobre o pensamento político que a Klan adquiriu desde a década de 1960 – demonstrando-se menos agressiva, embora só de faixada, e perseguindo cargos no governo para poder espalhar e institucionalizar suas crenças –, a obra faz paralelos entre os discursos de David Duke, líder da KKK na época e que pretendia concorrer à presidência, e Donald Trump: várias vezes Duke fala sobre a América branca em primeiro lugar, ou sobre fazer a América branca e protestante grande de novo.

Embora talvez os discursos não fossem tão iguais, ao ler-se o livro, e pesquisar-se sobre o personagem, é possível ver que esse paralelo não é sem base. Para comprovar,  o longa traz cenas gravadas de membros atuais da Klan fazendo o mesmo discurso, e como o atual governo seria vantajoso a estes. Além disso inclui sequências que demonstram a ascensão da extrema direita nos EUA durante esse governo, incluindo uma triste cena real do atropelamento de uma manifestação anti-extrema-direita por um simpatizante desta ideologia.

A parte técnica é muito bem conduzida. Usando estereótipos de técnicas de títulos dos anos de 1970, particularmente do gênero Blaxploitation, e um bom uso geral das cores de cena, o filme tem uma parte visual refinada. O uso temático da trilha sonora para representar personagens é bem pensado, porém a mistura entre os gêneros orquestral clássico, rock/blues, e marchas militares, é ligeiramente inconsistente, levando a um resultado bom, mas que pode não agradar a todos.

Por fim não se pode deixar de falar das atuações. John David Washington ainda está no começo de sua carreira cinematográfica, encontrando sua voz, porém consegue fazer bem o papel de Ron Stallworth. Adam Driver transmite o drama e os dilemas pelos quais passa Flip Zimmermann. Topher Grace traz de volta seu conhecimento sobre os anos de 1970 adquiridos na série “That ’70s Show”, e faz um David Duke deveras cômico em sua ignorância. E Laura Harrier apresenta muito bem a voz do espírito dos movimentos dos Direitos Civis da época, e dos conflitos entre negros e o sistema racista.

“Infiltrado na Klan” é interessante. A abordagem cômica funciona perfeitamente para este fato mais estranho que a ficção. Com atuações e um discurso afiados, o filme corta fundo. Recomendado para quem quer assistir um bom thriller interessante, com uma trama bem desenvolvida. Além disso, o também é para aqueles que acham que o racismo está morto, pois demonstra bem como, infelizmente, ele vive e está forte.

por “Ulisses Carvalho” – especial para CFNotícias