Crítica: “Me chame pelo seu nome”
O filme Me chame pelo seu nome (Call me by your name) evoca o melhor dos ares festivos e sonhadores das férias de verão. É uma grande exposição delicada sobre o primeiro amor e as dores dos ritos de passagem. Dirigido por Luca Guadagnino, retrata o romance de verão entre Elio e Oliver, e pode ser visto tanto como uma história de amor quanto como uma bela narrativa sobre o tempo.
Indicado a três Globo de Ouro por Melhor Filme Dramático, Melhor Ator em Filme Dramático – com o talentoso Timothée Chalamet – e Melhor Ator Coadjuvante por Armie Hammer (Oliver), o filme tem recebido elogios por parte da imprensa internacional e com razão. Curiosamente, Me chame pelo seu nome tem uma participação intensa brasileira: um dos produtores é Rodrigo Teixeira, e a RT Features é a sua produtora responsável pelo filme italiano cada vez mais próximo do Oscar, o qual ainda não liberou a lista de indicados à edição de 2018.
A história se passa na Itália dos anos de 1980, durante as férias de Elio (Timothée Chalamet). O jovem está prestes a fazer 18 anos, e vive dias de leitura, passeios e transcrições de música. A família dele é composta por pais acadêmicos que recebem, nesse período, alunos de outros países para ficar na casa deles. Por isso, o americano Oliver (Armie Hammer) se hospeda durante o verão para acompanhar os estudos de arqueologia do pai do jovem e acaba por viver um romance efêmero de verão com Elio.
A obra tem o ritmo leve e preguiçoso de férias. A forma com que ela retrata o tempo parece distante da intensidade que vivemos no meio urbano atual. É fácil o espectador se deixar deitar na beira de uma piscina para experimentar a mesma sensação de Elio e Oliver ao aproveitar dias solares. A permissão do tédio, de observar os fatos e viver o dia sem ter como base tarefas a seguir, mas tão somente a presença do sol, é um convite irresistível que Me chame pelo seu nome faz e consegue cumprir, deixando o espectador viver tudo com intensidade pela perspectiva do jovem Elio.
A paleta de cores e a fotografia são compostas pela delicadeza das cidades do interior da Itália, entre as águas e as pedras que circundam os habitantes, pedras essas que parecem sempre possuir uma história muito antiga para narrar. O figurino também é responsável pela excelente transformação do ambiente na Itália dos anos de 1980, favorecendo a caracterização dos personagens de modo fiel.
Além da adaptação do livro de André Aciman conceder um bom enredo, o elenco é o grande responsável pela qualidade do filme. Armie Hammer consegue transferir o ar misterioso e maduro à Oliver, característica que aos poucos se ameniza diante das emoções que ele se permite mostrar e como se entrega à relação. Por sua vez, o trabalho de Timothée Chalamet faz de Elio um personagem fascinante. Começa o filme com uma postura acanhada, uma personalidade reclusa que duvida de si mesma diante de Oliver, para uma figura que amadurece aos poucos diante dos olhos do espectador. Notamos isso pelo olhar, pela forma de andar, os gestos e as falas insinuantes de Elio, tornando-se um personagem cativante, do qual é impossível tirar os olhos.
O filme poderia ser mais uma história sobre amores de verão, porém a forma com que se escolhe contá-la é o que faz dele uma excelente obra. As referências à arte, à filosofia e à música não são aleatórias. No conjunto, o longa se compõe por cada uma de suas menções. A primeira referência que se pode notar, na trama, é o espaço onde os personagens se concentram. Em alguma cidade da Itália, os personagens criam um vínculo em um lugar onde a história tem camadas intermináveis. O pai de Elio é arqueólogo e a produção trabalha sob a mesma tarefa: explorar e descobrir sentimentos como quem encontra uma estátua esquecida ao fundo do mar. É Vênus, a deusa do amor, por sua mão feita de pedra de outros tempos, que coroa e oferece trégua à relação dos personagens.
A presença da água também é importante. Primeiro, ela se mostra como parte do imaginário da Roma antiga, dos tempos de banhos públicos entre os homens em águas termais. É confirmado pela História que, entre os gregos, a relação homossexual não era tabu. Pelo contrário, a relação entre homens mais velhos e os mais novos era incentivada por se considerar que havia uma transmissão de valores do mais sábio a nova geração, e que o mais velho aprendia com o mais novo.
Elio e Oliver possuem, de início, esse obstáculo da diferença de idade, que aos poucos é superado. É bem-vindo o fato de a trama conseguir apresentar uma relação igualitária, que não consiste em um homem mais velho explorando um mais jovem, numa relação em que pesaria a experiência e conhecimento do outro enquanto o mais novo se sentiria diminuído ou mesmo privilegiado apenas por ter sua atenção. O filme toma cuidado para apresentar uma relação mútua particular entre duas pessoas de idades diferentes, com uma interação que cresce de forma natural, sensível e realista, sem soar desigual ou abusiva pela idade e experiências distintas.
A abordagem do masculino usando a sensualidade das esculturas gregas de Praxíteles também contribui muito para o longa. Sabemos como é difícil e um tanto raro, no cinema, ver o retrato do corpo e da sexualidade masculinos da mesma forma que se vê o feminino. A verdade é que a nudez feminina é sexualizada com imensa frequência nas artes, enquanto a masculina por vezes é dada como apenas uma exaltação do corpo atlético e honrado por representar a força potencial pertencente ao ideário masculino.
A narrativa faz dos próprios personagens uma alusão às esculturas gregas e ao passado da Itália, e novamente, a água não é item arbitrário. É possível entender a estrutura do filme se prestarmos atenção às citações de Heidegger e principalmente aos fragmentos de Heráclito. Na trama menciona-se a famosa frase de Heráclito, filósofo de cerca de 500 a.C., “nunca se banha duas vezes no mesmo rio”. O filme, com a sua simplicidade de mostrar um romance efêmero, também dialoga com a ideia filosófica de Heráclito, de que nada é fixo, a única coisa permanente, segundo ele, é justamente a mudança. Grande parte do filme se passa nas águas. A estátua resgatada do mar é a mudança entre Oliver e Elio. As outras cenas em que os dois também se encontram nas águas são simbólicas na relação de ambos como mais uma mudança. Elio e Oliver não são os mesmos cada vez que se banham nas águas, e a relação muda os dois.
O ponto que arremata a inteligência do filme é a presença do fogo. Entre os pré-socráticos, buscou-se responder qual era o elemento essencial que forma o cosmos. Tales, considerado o primeiro filósofo ocidental, afirmou “tudo é água”. No decorrer da produção, vemos as referências ao sêmen e ao alimento suculento (o pêssego) como parte importante da história dos dois, sendo que são elementos mencionados pelo próprio Tales como sinônimos de vida por serem úmidos. Porém, Heráclito via o fogo como o elemento da natureza que definia o cosmos. E por que o fogo? Porque ele é a luta dos contrários, é como existe, de fato, vida: na mudança. O fogo seria, então, a imagem da permanente mudança, da vida que consome a si mesma. No filme, o fogo se apresenta como a mudança que é preciso contemplar por ser inevitável na existência humana.
Dito isso, Me chame pelo seu nome apresenta uma relação com um arco bem planejado na sua proposta, sem necessariamente ter que oferecer reviravoltas e tristezas. O título apresenta o peso da relação desses dois personagens: carregar o nome do outro é assumir a responsabilidade pelo outro. A película, em todo o seu retrato delicado de um verão, apresenta, assim, um ensaio sobre o significado da vida e do tempo. O término deixa notas melancólicas por mais um verão terminado e a sensação de ter presenciado um produto de imensa qualidade.
por Marina Franconeti – especial para a CFNotícias